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Publicado em: 14 Julho 2017

O confortável limbo da abstração

Artigo de opinião da Presidente do Politécnico do Porto.

É desconhecimento de nós o que mais nos afasta do outro. As conclusões saídas da cimeira europeia, reunida em Tallinn na semana passada, são um esmagador murro nos pilares virtuosos onde gostamos de edificar a "cultura ocidental", "os valores da Europa" ou denominada "civilização".

A reunião propunha-se discutir uma "resposta coordenada e concertada" à crise migratória em Itália. Com efeito, é à costa italiana que chegam milhares de refugiados (84 mil este ano) que fazem hoje a rota do Mediterrâneo, via Norte de África (290 mil aguardam na Líbia, em campos de dor, a viagem para a paz). A Itália, que vive esta enorme pressão, pedia a abertura de portos de outros países europeus aos barcos que socorrem migrantes. Atualmente, independentemente da bandeira dos barcos que resgatam, cabe à Itália a coordenação e a determinação do porto para onde se encaminham os migrantes. Roma ameaçou fechar os portos e propôs sanções na gestão dos fundos europeus aos países da UE que não colaborem.

Mas, sem o consentimento dos 27, sem acordos bilaterais os portos permanecem fechados e a EU continua a premiar uma cultura de demissão humana e política.

Haverá, sim, mais dinheiro. A UE paga à Líbia para fazer de tampão no espaço europeu, tal como o fez com a Turquia. Promete, também, face à pressão italiana, mais fundos para segurar a situação, em especial nos custos necessários à devolução dos refugiados "clandestinos" aos seus países de origem, e a Frontex (agência europeia) vai elaborar um novo plano de patrulha do mar Mediterrâneo.

A Itália é hoje uma ilha, um contentor, um vulcão reprimido, o depósito do "lixo" inconveniente. Mas será possível, mesmo que humanamente violenta, esta gestão dos migrantes? Cerca de 80% desta massa de gente nem sequer pode candidatar-se ao estatuto de refugiado: são pobres que fogem da fome, da miséria, migrantes económicos nascidos das alterações climatéricas, da ausência de verdadeiras políticas de cooperação e desenvolvimento sustentável. São uma massa anónima amontoada em barcos; naufragados, ou de olhos perdidos na chegada a um ponto de acolhimento, enchem de imagens dramáticas as televisões, acordam emoções e palavras piedosas que num soluço brotam, suavizando consciências momentaneamente perturbadas. Mas não têm nome, não dormem na cama dos nossos filhos.

Simulacros de si mesmo, sombras projetadas de uma ideia abstrata de Humanidade, resistirão como feridas na memória esquecida.

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