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Publicado em: 13 Janeiro 2017

Como Soares

Artigo de opinião da Presidente do Politécnico do Porto.

Há gente que enfrenta a vida com cara limpa e mãos abertas. Gente que se entrega sem barreiras e vive o Mundo numa extensão natural e óbvia de si mesmo, cumprindo-se num continuum que não conhece a dualidade. O seu centro subjetivo nunca é individual, no sentido exclusivo do termo; nunca é solitário, e o lugar da felicidade é sempre com e através dos outros. Conheci muita gente assim. Conheço. São os chamados filantropos - os que amam a humanidade - e, independentemente da natureza do impulso que os move, religioso ou laico, possuem um espírito que os habita, uma luz no olhar, um calor nos gestos que nos emocionam e embaraçam.

Não são todos do mesmo tipo. Uns trazem na boca o sorriso cândido da infância, como se nunca tivessem conhecido o mal, ou por ele nunca tivessem sido tocados. Outros têm uma musculatura densa, uma determinação feita certeza, uma força temperada pela fragilidade que a abertura ao Mundo sempre traz. Entre uns e outros há toda a sintonia e diversidade que caracteriza o Universo e a mais pequena forma de vida.

Pele, alma, ou consciência, que importa a fonte? Miscigenadas pelos múltiplos lugares visitados, pela pluralidade de corpos vividos, ideias partilhadas ou descobertas, cansadas e renascidas de tantas fronteiras cruzadas, estas vidas têm a intensidade de mil vidas nascidas de cada encontro.

E o elo forte é esse: o encontro, o momento solar do "outro" como revelação: quando uma outra realidade se me impõe para ser compreendida (vivida, pensada, problematizada), o que era até aí instituído pode ser abalado e uma causa nova ergue-se, afrontando sem pudor o presente, para exigir outros possíveis. "Nasci num país ignorante e pobre (...) Vi fome nos campos e cidades e há coisas que não se esquecem" (Mário Soares).

Sim, morremos no corpo amplo da morte de quem soube ser "nós". E esta morte é ainda liberdade, consciência da viagem como partida permanente de nós mesmos, crítica, aprendizagem, vida, porque "A verdade não pertence em exclusivo a ninguém e não há nada que substitua a tolerância". (Mário Soares).

Mas uma vida não se esgota na narrativa de todos os encontros. A sua verdade ou sentido ultrapassa o dizível, o manifestamente revelado e reconstruído em episódios que a emoção (feliz, triste ou de pasmo) fixou. Há um mar submerso imenso que permanece, uma terra-mãe nunca visitada por outros caminhantes, íntima, indizível na sua potência infinita que o amor deve respeitar com o silêncio.

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