VAI ANDAR À RODA.
PERDÃO, JÁ ANDOU!
Quando chegarmos já tudo aconteceu.
A roda da fortuna já andou; o acidente marítimo já naufragou; a irmã já enviuvou; os primos, solidários, já se fizeram à estrada; a água que brota da fonte é fresca; a lotaria já foi cantada.
Na base do jogo e da narrativa há, como quase sempre em obras desta natureza dramática e economia dramatúrgica (e musical), um ardiloso equívoco que se consubstancia em variadas premissas: numa viagem que não é apenas uma viagem; numa dupla de primos que não são apenas primos; num vendedor que não é apenas um vendedor; num naufrágio que não é exatamente um naufrágio; e num bilhete de lotaria que, por fim, é apenas um bilhete de lotaria. Só que, sendo a única coisa que realmente é o que é, porque treslido, deixa de ser o que prometia ser, e passa por momentos a ser o que era desejo comum que fosse, mas que, definitivamente, não é.
Confusos?
O melhor é ouvir O SESSENTA E SEIS.
No centro da trama estão um bilhete de lotaria (o número 66), a viagem de dois primos (Frantz e Grittly) que partem do Tirol para Estrasburgo.
Grittly sofre com a notícia da viuvez da irmã, na sequência de um naufrágio. Frantz vive na excitação da chegada ao fascínio de Estrasburgo. Pelo caminho, encontram Berthold, um habilidoso comerciante, que vende o que tem e o que não tem. Frantz agita-se com o número da lotaria "O 66!" (o bilhete que tem no bolso), que Berthold grita em alta voz.
Com encenação de António Durães, o espetáculo foi adaptado por Mário João Alves, um dos músicos que compõem a all’Opera, juntamente com Sara Braga Simões, Job Tomé e Ángel González. A all’Opera apresenta uma versão para canto e piano, cantada na língua original (francês), mas legendada e com diálogos em português. Democratizar o acesso à ópera é um dos objetivos da companhia, criada em 2014.
Offenbach (1819-1880) circulou com frequência pelos teatros nacionais na segunda metade do século XIX. A ópera cómica encantou e inspirou a Geração de 70, sobretudo Eça de Queirós, como conta Mário Vieira de Carvalho em "Eça de Queirós e Offenbach" (1999). O repertório do compositor foi presença assídua nas casas de espetáculo da capital, mas também do Porto, onde se multiplicavam os teatros e salões particulares.
A opereta "O 66!" fez sucesso no Porto no século XIX, onde existiam várias teatros com temporada regular de ópera. Percorrer a história destes espaços, através de Offenbach, é conhecer o Porto oitocentista boémio e burguês. Uma cidade que prosperava de dia com o trabalho dos seus comerciantes e que se apresentava à noite para fruição destes mesmos investidores, que empregavam parte do seu lucro nas atividades culturais, com destaque para a ópera e a opereta.
De acordo com a investigadora Ana Maria Liberal, entre 1875 e 1887, "O 66!" circulou por três teatros da cidade, em nove récitas. Só no Teatro do Príncipe Real (atual Sá da Bandeira), "O 66!" foi representado sete vezes na temporada de 1875/1876. Mais tarde, em 1886, "O 66!" apresentou-se no Teatro D. Afonso, na Rua Alexandre Herculano. No mesmo ano, a opereta subiu ao palco do Teatro Vasco da Gama, situado na atual Rua do Teatro, na Foz.
"O 66!" de Offenbach
Encenação por António Durães.
miguel.carvalho@sc.ipp.pt
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